Não sou fã de lutas, artes marciais ou qualquer
coisa que envolva a palavra guerra de maneira direta ou velada, apesar de meu
nome ser uma referência a Marcis (ou deus Marte, deus da guerra). Saí do
exército quando me vi diante de armas, elas me lembravam a infância que tive
agaixado em função dos tiroteios da favela surgente em frente de onde
morávamos. Muitos conhecem até as piadinhas infames que uso referentes à luta,
pancadaria ou o que concerne a isso. O único gosto sobre luta vem dos vídeo-games
que joguei no decorrer da adolescência, um em especial, o Street Fighter, me
será eterno. E o que assisti ontem foi um final round entre um lutador que me
lembrava Ryu – o que foi capaz de gerar uma cicatriz no peito de Sagat – e a
queda do fantástico lutador de Muay Thai, dono de joelhadas e pernadas longas,
inflamáveis e infalíveis. Não tanto mais.
Anderson
Silva é desses típicos heróis brasileiros, forjados na limitação, no
impensável, na vitória que vem da batalha cotidiana a todo custo. Símbolos que
surgiram há muito num romantismo de risos nacionais, criado no colonialismo de
poucos recursos e muita força braçal, pois é isso que sobra para muitos
brasileiros, a força braçal, pois educação é coisa para poucos e os que
conseguem vencer pensando são nerds que internacionalizam sua capacidade para
outra nação (e que depois não se veem como brasileiros). Anderson, Lula, Pelé,
Neymar e muitos outros se criaram nessa mesma forma que hoje alimenta o ideário
brasileiro e os instiga à vitória, movidos pelo “sou brasileiro e não desisto
nunca”. No entanto, há neles também alguma demonstração de arrogância, algo que
pode ser fruto de uma necessidade de diferenciação em relação ao
verdadeiramente brasileiro, um humilde nato. E foi o que escutei sobre o nosso
Sagat, um cara que instiga psicologicamente o adversário e em sua penúltima
luta, este Ryu Weidman deferiu um certeiro que o bambeou e caiu, perdendo o
cinturão. Agora, em uma revanche válida, midiática, explosiva e testoterônica,
Sagat sofre de seu próprio veneno. Dever de casa do mocinho, que partiu para o
próximo nível, o de escrever o seu nome na parte final dos créditos e no
ideário negativo dos brasileiros.
Em
função de sua arrogância, parece que Anderson recebeu de vez a punição. Para os
que não conhecem, Sagat faz parte do quarteto final de inimigos imbatíveis no
jogo. Com ele se compõem o Balrog, o boxeador de Las Vegas; o Vega, o espanhol
ágil e de garras afiadas e M.Bison, o mais forte, o último mesmo, líder de um
cartel – possivelmente de drogas – na Tailândia, para quem Sagat diretamente
trabalha. Quando jogávamos, não nos importávamos com os símbolos políticos,
incomodava sim o fato de o brasileiro ser um monstro eletrizante, o Blanka,
ignóbil, forte, fácil de ser derrotado, porém queríamos jogar. Sagat queria
porque queria lutar. O repórter afirmava sobre a hegemonia brasileira no atual
UFC, ou seja, os inimigos a serem batidos. Um close no brasileiro desafiante,
Belfort, com cabelo espetado, uma cara desfigurada pelos anos de luta e se
colocando como o próximo a ser confrontado. Em seus olhos também não havia a
humildade nacional – Belfort não vem da pobreza, das limitações típicas de muitos
brasileiros – ali ele era o Blanka, vociferando sua raiva, explodindo sua força
midializada, alimentando as bolsas de apostas, o Panis et circensis de todo o
sempre. O que enxerguei foi um vídeo-game de carniosso, tudo junto, misturado,
transfigurado no medo da certeza da vitória do mais novo e do afoito senhor por
seu cinto.
A
dor da comoção foi a dor do coletivo. Via-se um lutador de Muay Thai vendido,
com golpes conhecidos, a hegemonia descamisada, descoberta. Do outro lado, um
lutador pouco conhecido, mas sustentado no pedestal de um caminho de lutas
PERFECT (na linguagem do jogo, impecável, sem derrotas). Os dois possuíam até
olhares de certeza. E quando depois de um round, muitos socos, sangue, pancadas
firmes e certeiras, sabia-se que a luta seria osso duro de roer.
E
roeu. Em um chute, que deu para se ver a concentração de um Special (golpe que
deflagra muita força e que pode finalizar o inimigo), este virou contra o
aplicador e Sagat cai, vítima de si mesmo, de sua vontade pela vitória o quanto
antes. Ryu lhe trouxe a cicatriz na perna, e no peito, no ego ferido da ágil
aranha abatida por si mesma. Todos ficamos sem sono, levantando incertezas
sobre o futuro do nosso. A dor que assomava a todos vai levar muito tempo para
cicatrizar.
É
no fundo uma péssima forma de terminar o ano de 2013. Um ano de levantes
nacionais, mas que sabemos que vai levar muito tempo para caminhar com todos os
seus pares e símbolos.