segunda-feira, 5 de setembro de 2016

Irmãos

Irmãos.

Todos temos. Mesmo se filho único, temos o eleito, o não sanguíneo, mas que num jogo de futebol você ralou o dedão junto com ele. Logo, verdadeiro irmão de sangue. E irmandade, no sentido amplo, é a pura felicidade. Não tem coisa mais feliz do que brigar com irmão, roubar-lhe o pão acabado de ser preenchido com requeijão ou dar uma tapa e depois correr. Irmão serve para isso: para aprendermos o mais lauto sentido do que é ser feliz.
Eu tenho dois, de ventre. Da mesma produção paternal/maternal. Parecemo-nos fisicamente. Mas é por aí que para. Somos tão distintos em nossas semelhanças, de rostos parecidos e vozes roubadas e pensamentos congruentes, que nos distinguimos quando concordamos com as mesmas escolhas. Ter irmão é isso: o mais puro senso de singularidade. Você se vê nele, mas ele não é você.
Nessa primeira microcomunidade fraternal, você divide o quarto, algumas roupas e dúvidas. Brincar ou ver televisão? Aprende que egoísmo não leva a nada e que o melhor é viver nesse convívio. Com irmãos, aprendemos a liberdade da molecagem, quando se disputa um verdadeiro campeonato de arroto, por exemplo. Ou de qualquer outra coisa, irmão também serve para isso. Irmão serve para tudo.
Quando exploramos o princípio da vida adulta, irmão nos mete ou nos tira de enrascada. Eu, que era o mais velho, costumava dar aquela ajuda ao meu irmão mais novo, sempre o mais nervoso de nós três. O meu irmão do meio sempre teve um espírito zen budista. Tanto que se tornou o mais religioso de nós três. Em matéria de namorada também, quando a ficar com a irmã mais nova – e consequentemente mais feia. Vou aqui confessar uma situação que passamos há muito tempo. Eu datava de uns 17 anos. O mais novo com 13 e o do meio com 15, possivelmente 16. Estávamos em uma viagem para Bahia. Aquele sentimento de curtição, uma vontade abrupta de querer viver novidades. Na praia de Trancoso, soubemos da área de nudismo. Corremos. Muito. Lá chegando, nossas expectativas foram severamente abandonadas. No caminho de volta à Escuna, apareceram três meninas. Três. Conta exata. Sem mais nem menos. Uma linda. Uma bonitinha. A outra, bem, nem se conta. Tadinha. Precisava de muito apoio. Malandro que era, consegui uma. Nisso que cheguei, falando como um típico carioca, as outras também vieram. O mais novo correu para o salvaguardo possível. O outro irmão nos olhava com uma cara de pedido de ajuda, socorro típico. Foi pela irmandade, hoje diremos, que ele ficou com aquela que sobrara. Acho que daí seu espírito religioso tomou dimensão; passou a fugir de capirotos.
Com o tempo, a vida nos joga para a rua. Ensino Médio descobrimos novos irmãos. Isso, no luxo de conseguirmos amigos que nos sigam para toda a vida. Eu tenho dois pelo menos. Dedico algumas de minhas conquistas literárias a ele. Na faculdade surgem outros, muitos. Coleciono uma penca particular de felicidades. Três meninas. Meninos, aos montes. Pessoas com quem divido a sala de aula. Todos em simbiótico espaço no meu coração.
Com a carreira de escritor, muitos outros. Paixões severas que me tomam as pálpebras e corroo com eles a tristeza que imprime a pisada dos cotidianos mais severos. Paixões não só por suas capacidades como escritores, mas como seres humanos.
A sala de aula também nos dá professores e alunos amigos. Cada ano eu ganho mais um. E mais um e mais um e mais um e mais um. Sei que minha casa é pequena para colecionar tantas fotos de cada um desses novos amores. Mas o coração de quem tem irmãos é enorme, adornado do mais puro e doce calor. É como uma colher de pudim dividido. É um abraço diferente todo santo dia.
Até digo, se você conseguiu passar a vida sem irmãos – das mais variadas naturezas – aconselho a encontrar. Essa é uma das maiores justificativas da vida.
Feliz dia do Irmão.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Mais 20! Por favor!

Uma ficha me cai neste início de ano: conemoro em 2016 vinte anos de magistério. Pode parecer muito, vinte anos de uma mesma coisa, uma mesma profissão, que durante muitos dos meus primeiros anos eu fui dissuadido de continuar, claro, diante de tantos, sinceros e válidos argumentos sobre ela, digo, como passaram rápido esses vinte. Como me foram apressados, ainda não sinto a canseira da mesmice. A vantagem de ser professor é que mesmice não existe.

Lembro-me bem quando com meus 16 anos eu me tornei monitor de inglês do Fisk, lá na minha lha do Governador. Era um imberbe metido a besta, que estudava com afinco o inglês e que precisava ajudar em casa. Juro, nem pensava mesmo em ser professor. O sonho daquele oblongo garoto era ser desenhista industrial de carros, pois era só o que eu imaginava. Os quadrinhos e a literatura eram sonhos à parte daquele amante de imaginações. Como gostava de imaginar coisas. Como gostava de pegar o ônibus e ir ao Fisk.

Lá descobri alunos. Em alguns, amigos. Em constância de explicação, fui tomando gosto pelo raciocínio aprofundado. Queria saber mais para explicar mais. A ilustração de carros passou a ser deixada de lado. Livros, quadrinhos e histórias, eu precisava de todos. Passei a ler desenfreadamente. A estudar um tanto mais. Aqueles meninos precisavam saber. Com o tempo tudo foi se mesclando. Abandonei desenho. Eu era de Letras.

Se alguém falou algum dia falou com você que dar aula era uma cachaça, como ele estava certo. Esse troço é muito bom - cachaça e aula, e hoje não me vejo fazendo mais nada além disso. Tudo bem, estou aqui escrevendo, publiquei livro, vou publicar outros, é também uma profissão, mas só agora que me dedico bastante à escrita, à sala de aula me detenho mais.

Minha primeira carteira assinada como professor eu só consegui em 2001. Colégio Pinheiro - acho que nem existe mais - ali na Penha. Ainda como professor de Inglês, desta vez para Ensino Fundamental. Antes disso, na faculdade, dei aulas de Língua Portuguesa e Redação em Pré-vestibular comunitário, em São Gonçalo e Alcântara - Locus Pré-vestibular, que saudade! Lá cultivei amigos que tenho até hoje. Professores. Alunos. Amigos.
Hoje dou aula em grandes escolas, estou na rede pública também. Nas várias realidades sociais há os vários sabores sa profissão. Sim, já senti o amargor dela, a tal da desvalorização, dos excessos, de algumas faltas de respeito, mas nada que me tirasse o gosto pela sala de aula. Esta cachaça tem constantes sorrisos.

Ok, sim, já pensei em sair de sala de aula. Já investi em concurso fora da área. Fui empresário - na educação -, já estive no jornalismo automotivo e cultural. Sempre afirmei que vim de uma geração poluída, que vive a escassez de emprego, a inconstância feroz da economia e a desvalorização ímpar do dinheiro. Temos no sangue a capacidade de rebolar e fazer dinheiro. Não muito, mas algum para defender o leite das crianças. Por sorte - ou acaso do destino - elas nunca me tiraram de aula. Não preciso mais de subterfúgio. Quero mais 20 anos disso.

Aliás , terei bem mais de vinte. Só pela prefeitura e Estado, tenho que me segurar até 2040. 24 anos até lá, ou seja, eu com 60 anos. Já predigo o texto : estou me aposentando, que tristeza! Enquanto isso, deixa eu voltar às salas, lugar de onde nunca sairei. 

terça-feira, 4 de agosto de 2015

Uma Flor esmagada no trilho

Uma vez escreveu Drummond – poeta maior do modernismo – sobre a flor e a náusea. Neste poema ele retratava uma flor feia, cinza, que rompia o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio que acompanham o dia a dia de uma sociedade capitalista. Socialista que era, imaginava um mundo mais digno, mais justo, belo, mesmo em uma flor feia. Se estivesse vivo, penso que teria ele motivo para todas as tristezas do mundo ao ver que o corpo de um homem, morto atropelado por um trem no Rio, não parou locomotivas posteriores, “a cidade capitalista precisa mover”.
A história de um ex-presidiário transformada em uma crônica triste, noir, de um cotidiano balizado pela pressa, traduz a que ponto chegou a indecência humana em relação ao próximo. O corpo de um homem em cima de trilhos, morto ao tentar fornecer sustento aos seus familiares – ele vendia bala nos vagões – profanado pela necessidade de a cidade seguir – eram muitos passageiros que não poderiam parar suas vidas em torno de um morto – reflete o nosso desapego pelo próximo. “Era um presidiário mesmo”, alguns disseram. Este homem teve pouca chance à dignidade.
Como a flor feia de Drummond, que traduzia esperança diante da pura tristeza, aquela flor humana esmagada demonstra o cinismo humano em sua máxima delcaração. Mas podemos pensar que a sociedade se perdeu de vez? Não sou tão pessimista a esse ponto, mas como professor, ainda nutro uma esperança em bons sentimentos. Como escritor, traduzo uma incredulidade. Ação e percepção andam lado a lado. Tenho medo de ser completamente vencido.

Que esta flor pisoteada em trilhos crie uma nova história para nós, brasileiros, humanos fervorosos, tradutores de alegria. Bem, é o que espero, no final das contas. 

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

À Tia Macaca e Vovó Thetê

                Se houve alguma saúde esse ano, eu devo a vocês. Depois de tanta surra, se houve alguma barreira a Amostra, esta eu devo a vocês. Depois de tanta luta renhida, travada no silêncio dos bastidores, viver quase toda síntese da derrota, acusado como motivo, se Minha Pequena Essência da Felicidade pouco ou nada soube, se ela despertou ainda mais para a vida, para o desenvolvimento de sua inteligência, para o todo que ela pode se tornar, eu também devo a vocês. Devo muito também a vários. No entanto, não há débito maior que aquele que se faz sem as cobranças financeiras, mas na súmula íntima da dedicação e da necessidade de ver transformação. Se houve alguma transformação positiva, eu devo a vocês.
                Eu devo a vocês os livrinhos de jogos, desenhos e brincadeiras que ela recebeu. Eu que não tinha tempo para comprar, para ir à banca e olhar o que tinha a cara dela. Eu devo a vocês os exercícios feitos, a paciência que ela exigia, carente, tão carente, tão lá e não aqui. Eu que não fui tudo, mas algo tentei ser, no fim limite do meu trabalho, quando com ela, às noites, a brincar um pouco, a conversar um pouco, a ninar quando me sobravam seus pequenos olhos abertos. Agora ela e me está tão distante.
                Eu devo a vocês um muito. Um eterno pedido de agradecimento. Não é a primeira vez que recorremos, agora então como produto misto de tantas desgraças e perdas e realocações e refeituras, parece não haver tempo para um fôlego, é sempre maratona atrás de maratona, correria que se faz para correria, com pouca chance ao descanso, com nenhuma chance de tranquilidade. Ainda sim, agradeço, em meio a lágrimas sufocadas, gritos de desespero mordido de língua. Agora, limitado à imposta distância que se fixa à minha realidade, antes produto do sonho dela, agora só do infeliz eu, aqui sozinho estou. Vivo o cárcere das dívidas financeiras. Abandonado alimentando cachorros e mato. Vendo no entorno todas as desorganizações, as faltas de conversa, a crença cega de que era a capaz, eu aqui, limitado, vilipendiado, socado em feno como estrume, esperando ser ruminado na íntima virulência de todas as tristezas. Finitude bate à porta, como forma de libertação. Mas antes de buscá-la, vou honrar a cada um.

                Findo aqui esta minha crônica vontade de me redimir. Perdão por todo e qualquer erro que deixei acontecer, que vitimou cada uma de vocês duas. Fico-me mais tranquilo, entretanto, por saber que há vocês, há a Bisavó, a questionada que não deveria ser, ela é também alvo de minha paixão, de meu amor, de minha eterna gratidão em existir. Só peço que nessa nova jornada de paralelepípedos disformes em passos de salto alto eu não seja marginalizado, usado como argumento de motivo ou até esquecido. Eu nunca esquecerei vocês. Amo-as. Muito. E muito obrigado – por tudo! 

Natal de 2014

Desta vez não teve árvore
Enfeites
Rostos felizes de noéis chineses
A soar barulhos incompreensíveis que aceitamos como músicas de Natal

Desta vez não teve correria
De uma preocupação quando a casa fosse se encher
Com parentes que já ansiavam ceia
E todos os quitutes guardados
O cheiro inundando a casa
A geladeira segregando garrafas pet de água
Para caber mais e mais doces estupidamente enormes
Rabanadas estupidamente amontoadas
A luz da mesma geladeira pedindo socorro
Tudo que poderia traduzir um feliz caos.

Aqui dentro jaz o silêncio do esquecido
Daquele que não merece mais ser parte
A única palavra que pensa é Vilipendiado
vi-lhe pendurado
será que após serei perdoado
da estupidez que adorna raciocínios?

Vão-me dizer que escolhi
Fruto permitido da ogiva desta sua tristeza
A contornar mágoa com uma máscara
De íntima iniquidade de existir
O que você fez será eternamente perdoado
Pelos remédios que consomem esta sua lucidez.

Lucy in the Sky of Diamonds
Todos dizem que é eterna sensação de elixir
Mas o que eu quero era poder estar aí
Ritmando o caminho
Engenheiro de obras prontas
A dizer
Que a quantidade estúpida de rabanadas será pouca
Que a quantidade estúpida de doces será pouca
Que o tamanho do chester, tender, presunto, arroz, uva passa, nozes, castanha, refrigerantes, bebidas das mais diversas e tudo de todo o outro que agora me vem à cabeça será pouco.

Agora tudo são lembranças
Tudo são esquecimentos
São mágoas
São reticências

Marco o Natal de 2014 pela ausência da árvore de Natal nesta casa enorme
Tão grande quanto toda a tristeza que hoje ela adorna
Toda a injustiça que dela aflora
Eu que sou vilipendiado
Maltratado
Esquecido
Invalidado
Sem direito a porta de entrada
Com a porta de saída tão escancarada
Lá há alguém que me chama
E diz, “Vem, não há mais volta. Essa sua vida foi só revolta. Entenda o todo em que te transformaram. Aqui também não há luz. E esta é nossa sorte, pois nada e tudo se confundem”.

E de lá que hei de aceitar o convite.
Para cear.
Pela última vez.


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