quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Café Aleluia

Não o fazia diferença ser-lhe enfim um final dia, mas o era, por sorte. Ensaboando o rosto como de costume às quartas-feiras à noite, só o foi tempo de esperar a chegada do filho da faculdade e trazer a notícia pelo último, Fernando, ta sabendo, seu avô morreu, e assim descobriu Fernando a morte daquele que não conhecia.
Chocou-lhe o fato do decalque do comum em como podia ensaboar o rosto com tanta suavidade preparando-se para barbear-se e dar tal notícia. Era o desenho do simples, a falta do feliz que havia no rosto de seu pai, e Fernando, ainda a digerir, salpica, Vovô, seu pai?, Exato, e desenhou-se a descida da primeira gilete ao rosto. Ali pôde de fato rasurar as perguntas sobre o pai, entender o que o motivava, por que tanto trabalho, por que poucos filhos, a distância, principalmente dos olhos. Deixou se refletir um tanto de sombra, esconder-se entre ineficiências da luz de lâmpadas mal-dispostas e ver o pai a desenhar a pele, a dar-lhe certa sobrevida.
Enterro amanhã, quer conhecê-lo?, e assim se fez Fernando na lembrança que não existia. Vislumbrou o fato de nunca ter visto o avô mesmo, de não saber sua voz, o passado que assim se poderia, apenas deixou para o neto a certeza do pai, a firmeza daquela mão, Quer ir mesmo, filho?, perguntou sua mãe, Devemos?, É bom, né?, e lá estavam, como se houvesse saudade naquela ida.
Fernando pôde rever alguns poucos que eram conhecidos. Mas o que havia de vida era apenas a pouca respiração, restolho do dia anterior, lembrança das breves e firmes giletadas. Deu-se o enterro, um nada de muito, sutis lágrimas só dos que conviveram. Havia o desenho de uma lápide, descobriu-se então o nome, sobrenome, data de vinda, data de ida, nada de uma linha de resumo ou rascunho. Por ser pedra, e não tela viva, nem mesmo aquele sinal intermitente do programa de digitação a chamar palavras. Era a lápide, sem epitáfio.
Do lado de fora do cemitério, a outra linha em Paraíba do Sul, havia um local chamado Café Aleluia. Ali todos se reuniam para saborear o que se pudesse, como forma de uma qualquer vida ou pós, pré-vida, suporte em síntese. Invariavelmente todos iam ao Café Aleluia, por pior que fosse o nome do local. Como forma de certo amparo coletivo, o dono, católico de óbvio, dava p primeiro copinho de café por conta da casa, como se abraçasse os parentes do defunto, do segundo em diante, cobrava-se, Sinta-se abraçado e me abrace, então, era o que se dizia no sutil, poucos ficavam no primeiro copo. Fernando e os vários todos estavam no Café, também no invariável. Juntaram-se algumas mesas e desenharam uma família naquelas cadeiras de amarelo e ferrugem de marca de cerveja. Café para os adultos, coca para as crianças e algum punhado de esfirras no centro da mesa. O pai de Fernando era o mais incólume, dissoluto, também ali poucos falavam. Os poucos que respingavam aplacavam sobriamente as lágrimas e também pouco falaram. Não havia palavras para o passado do morto, nem muito mesmo resignação naqueles olhos. Era um enxame de opiniões contido naquele silêncio, uns a abraçar a primeira matriarca, avó de Fernando, outros a contornar a segunda, mãe de mais outros três tios do jovem estudante público. Alguém até ensaiou palavras, brevemente percebidas, era uma certa cor de sofrimento naquela percepção e assim se viu melhor calado.
O relógio não bailou nem dez minutos de mais, e todos já eram saída. Alguns abraços, poucos telefones trocados, a noite era só um evento, não um mote para a família. Fernando percebeu algumas promessas diplomáticas, Algum dia apareço lá, e todos desenharam passado. Seu pai, ainda como de firme em pé, voltou ao balcão do Café Aleluia, pegando por sim mais um café, Vamos embora, meu amor?,perguntou mãe ao pai, Meu filho, traz o carro até aqui?, e assim fez Fernando, resignado. Após desligar o carro, viu que o pai ainda desfiava sobriedade e certo olhar de fortaleza. O café era a única forma de se chegar até ele, Deixa seu pai, ele precisa de um tempo sozinho.
Falso o pensamento o dela. O silêncio masculino nem sempre é tristeza, mas fruto da máxima incapacidade de se entender. De dentro do carro, já no banco de trás, conseguiu ver o pai dar o último gole naquele copinho de plástico e se virar após ter recebido o troco. Na parte de dentro do estabelecimento, havia o nome do local, como se servisse para lembrar onde todos estavam. Fernando viu o pai dar uma última olhada para aquele nome e o viu dizer amém, rindo.
Você está bem para dirigir, meu amor?, Melhor, impossível, disse. Dali, partiram para casa, e a única lembrança a se fiar é o nome do local, a guardar a sobriedade daquele pai que disse amém rindo, ou por resumo da piada daquele nome, ou por se livrar de algum peso. Amém pode ser fim de reza, ou pouco mais do que isso.

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Soneto para Obama

Ei, Mister Barack,
Não se esqueça que um dia
O senhor já morou em barraco
E em teus lombos, na labuta, o sol ardia

Pois é, senhor Hussein,
Entenda sua responsabilidade
De não só fazer o que lhe convém
Para que o peso da mesmice nos não enfade

Então, Obama,
Não esqueça que teu povo é de gana
E não troca suas fortes raízes

Pelos podres frutos de um jardim alheio
Que há tempos e desmedidamente
Inclina à morte sem receio.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Apelo



Por favor, leem o texto abaixo todo, pois preciso das críticas. Vai, diz que sim, diz que sim, diz que sim, siiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiimmm?


Epopeia Insignificante - 1a. Parte - Ato II

(não vou negar, ainda não está terminado, por ser um tanto longo. Mas aqui vai um paleativo, algo para saborear o caminho que está tomando. No final do Ato I, o personagem se encanta com uma casquinha de peixe e por isso perde a brincadeira Agora ele está mais velho, um pouco mais velho. Esse é o destino de toda epopeia - que agora não tem mais acento, estranho não?)

II

Mesmo com o passar do tempo mais simples, o menino agora é um homem. Longe daquele mundo de mato, árvore velha e cheiro de terra molhada. Longe daquele horário de acordar, encarar o rio em dia de céu preto, acinzentando por não suportar o peso do sol. Longe dos homens das redes e dos barcos de pesca, ou dos vários varios dos outros que se perdem no desvario daquele dia que se cola de dia sem rumo. E como lhe passam, o menino agora é homem, no puro peito do rapaz lutador. Mas mesmo assim, o mundo que lhe brilhava na infância agora é apenas apito de toco de lembrança, no escapismo do copo de café na mesinha no canto do corredor com gosto de ar condicionado. O menino agora é homem de roupa cinza, sapato de onomatopéia executiva, e pulso de cronômetro de pulso, perto da artéria do pulso que lhe leva o susto de rumo ao batedor cardíaco. E nos muitos tuntuns sem ritmo ou colado no susto da hora, o menino agora é um homem grande.

Na foto de sua mesa, há uma esposa, há um menino que lhe puxou os olhos. É naquela foto que fica um breve refúgio dos vários papéis que deve ler e assinar, entregar o quanto antes dos vários outros que estão vindo trazidos por sua secretária, distinta moça, que vê nele também refúgio em aurora psicossomática por achar que secretária esperta é aquela que casa com o chefe. Mas ele nunca foi homem de duas mulheres, tinha medo das investidas contra homem de calça frouxa. Mesmo entendendo da beleza que ela possuía, da juventude que ela guardava e de toda capacidade de fazer as pernas masculinas dobrarem como sempre gostaram de dobrar, ele se lembrava de tudo que passara com a namorada, com a esposa, e com aquela que natural se tornou a mãe de seu único filho. Não o que apenas conhecia, mas que realmente sabia ser seu, na doce inocência de um único relacionamento. Não lhe havia vontade de destruir tudo aquilo. Possuía, sim, vontade de solfejar impropérios e destruir aquela pilha de papéis, que nem mesmo as invenções humanas foram capazes de fazerem sumir. Aliás, apenas sumiram as confianças e ficaram os papéis assinados. É o mundo que vive na sombra da própria infelicidade, e ao homem, antigo menino, ficou o dever da caneta e da leitura.

Tornou-se importante na empresa que cresceu como rapaz. De alguém que treinava o papel estudado na faculdade, agora era o exemplo de persistência. Tinha orgulho próprio, construído na lima do próprio suor, mas que, com o tempo, virou uma máquina-cronômica de fazer trabalho, de produzir, nada mais além. Sabia todos os era e não era, os pode e não pode, os sim e não, e eterno inexistir do talvez. Foi aquela sua única empresa, como fora a esposa o único amor. Era o que para ele o destino criara: unicidades, e delas nunca fugiu. Era sempre o excesso da dedicação, e da dedicação nunca fez mais nada. Vivia para respirar dedicação. E não mais do que isso. Olhar para o alto e regalar os olhos por causa do horário, olhar para baixo e ver a foto do filho e esposa, ou o fluxo dos papéis que se somavam.

E foi nessa trajetória de unicidades que apenas respirou. Não fez mais nada. Respirou. Puxava ar pelo fim do expediente. Puxava ar por ter acordado. Puxava ar por o filho chorar. Puxava ar por ter esquecido de colocar o lixo no local. Respirava apenas. Ou puxava ar. Já até houve nele ambições maiores, mas agora apenas queria ar.

Era também seu papel ensinar a todos os novos rapazes os pode e não pode e as impossibilidades do talvez. Andava com o grupo pelos longos corredores da empresa, adornada de treze andares, sendo o último o óbvio andar da chefia, e naquele seu andar, o quarto, um ambiente de reuniões, afazeres, assinaturas, análises de situação e tudo mais que concernia sua empresa. Os rapazes já se treinavam com ternos, com maletas de couro – ou courino, uma falsificação do couro – e canetas em famoso formato da Parker. Mas o que se vale mesmo é a maneira como observam o homem, antigo menino nosso, que se concentra de todas as grandiosidades daquela empresa. Ele era, sim, peça chave de todas as maquinaramas inimaginadas para fazer aquele nome de trabalho chegar a possuir um prédio de treze andares – o adorno certo para as possibilidades de gigantismo.

Para o novo homem, aquele que se refez, da mesma maneira que qualquer um se adapta quando pode se adaptar ao meio, assim que saiu da faculdade, o que importava mais na vida era o óbvio caminho de crescimento da empresa. É o que hoje destaca um grupo em meio a outros, transformando tudo em relações hindu-numéricas de supremacia. Naquele quarto andar havia outros homens, também antigos meninos, mas cada um com sua história e sombra. O que diferencia este homem, o atual nosso, é raiz de sua história, presa em uma colônia de pescadores e que conseguiu tirar da sua possibilidade de óbvia vida – o caminho dos pais no mesmo barco de pesca – e chegar a uma universidade que o acolhesse e lhe desse a possibilidade de ser este alguém que ensina os toques básicos daqueles sapatos onomatopéicos no chão de mármore daquele quarto andar.

E assim se faz a semana daquele início de ano. Andava por entre sombras menores, mostrando o motivo de tudo aquilo ser uma empresa. E andava e criava sombras, mostrava salas e caminhos. Dava as eternas sutis dicas para ouvidos de julgamento de inteligência. E assim queria a empresa, inteligentes que colocam essa capacidade a dispor da empresa. E a própria não quer mais do que isso. Inteligência. Porém, as mecânicas palavras não relutam raciocínio. Era tudo de um óbvio caminho. Sibilante caminho de raciocínio, que não mais incomodavam seus ouvidos, mas surtiam estrondo efeito naqueles rapazes. Para ele era apenas um chiado antigo, acostumado no passado que é eterno presente para aquele que se acostuma ao trabalho, e é nada mais de lhe haver a frente.

Atrás de sua sombra, homem brava de gente em simples vontade de ser aquela sombra, perto ou mais perto daquele sucesso, em brilho que se brilha no membro que pisa o chão do quarto andar, caminhando toc-tocs com mais toc-tocs, ele a ensinar, eles a ouvirem. Seriam reflexos daquela sombra? Seriam pilares novos daqueles trezes andares? E o que se sabe, eram treze meninos a andar. Não tão jovens quanto o moço menino nosso, mas sofredores da vontade de se construírem homens. É a beleza social moderna, que re-brilha na capacidade da conquista – ou compra – a maneira de perceber quem este o é. Mas, por mais básica que fossem as ambições, ou mundanas, cabia a cada um reflexo de saudade de infância.
Podia ser aqui apenas a base da construção da simplicidade, normalmente destruída pela forma básica de ganância que se re-faz no puro instinto de sobrevivência, mas do que vale estudar e olhar o mundo crescer se nele não se pode estar? É nadar contra a maré que justifica todos aqueles sapatos se colarem de esperança. E se mesmo moço-homem pensasse no moço-menino, antes garoto-corrido, agora rapaz-homem, do que se valeria também o tanto que se conseguiu? O brilho básico da aurora que ali se monta é tão grande e tão quente que todos até se acostumam, e nosso menino-rapaz, eterna seqüência de pureza, nem percebe o campo refluxo que pode estar se montando contra ele. Na verdade, todos sonham em um dia ter o lugar o qual ele conseguiu. E mesmo que o raciocínio seja básico – se um dia conseguirem chegar até onde ele está, com certeza ele já conseguiu um cargo maior – , isso deve ser o visto: nem todos os sonhos passam por todos os respeitos.

Mas que o óbvio não se perceba. E que mesmo todos os respeitos apenas constem na superficialidade daqueles jovens olhares, a inconstância humana é que deve se valer do mais puro instinto de vida. Sim, pois, os que hoje buscam viver, ou encontrar uma vida melhor, assim o fazem por causa da inconstância em que a própria vida se criou. E a tão falada evolução da espécie não conseguiu fazer o homem fugir da lei do mais forte. Porém, o que torna a todos aqueles que andam atrás do nosso menino-rapaz fortes? A maneira de se adaptarem aos meios mais violentos.

E peixe morre pela boca. Já dizia mãe. Eram todos medindo as palavras, medindo as situações, medindo as impurezas de todos os momentos, ou o que os momentos poderiam criar de problema. Acaba por se tornar a vida mesura desnecessária, e a vida se perde na intenção da lei do mais forte. E é o que ali também será julgado: no meio de todos aqueles onomatopéicos andares apenas um será selecionado para continuar. Será uma semana de cão, não tanto quanto nosso rapaz-menino já se acostumou a suportar, mas para aqueles que se inscreveram no programa de treinamento para se valerem da possibilidade de apenas uma vaga que o grupo empresarial oferece. Estão todos à caça de novos talentos. Estão todos sendo caçados como novos talentos. E mesmo que o programa corra, e mais de um seja selecionado, apenas um constará.

E ao longo de um grande período de vida assim se construiu o cotidiano de nosso. E se tudo lhe era mais do que um alguém do interior poderia ter pensado para si, para ele nada mais se resumia de felicidade extrema. Era tudo apenas costume. As conquistas se limitaram a dias que se colam de dias. E as felicidades, as boas, eram tão raras quanto um sentimento de calma. E para nosso menino-rapaz, moço-velho, as felicidades se reduziam drasticamente. E nestas fortes reduções, nada mais o faz despertar. A colagem dos dias em dias não trazia mais do que a esperança de estar empregado. Puro era esse solfejo de querer mais do trabalho, porém, e este sim um porém, a si não se trazia nada de gosto do que estar trabalhando. A esposa era conquista eterna, e dali sabia que não ia perder posto. Do filho, a genética não o tira do papel de pai, o que o lhe sobrava era o lhe de si em si. Era o trabalho, no mais puro sabor egoísta de crescer na empresa.

É no seu porém, o crescimento na empresa estava em se fazer ser percebido sempre. Não precisava mais provar sua competência, pois isto já havia acontecido. Só não podia era deixar ser vencido. E os novos, que ali se caçavam a todos, mesura do destino do instinto, também não podia constar alguém que pudesse ter mais capacidade que ele. O escolhido não podia ser melhor; e o escolhido deveria completar o ego desse nosso moço-homem. E assim se é moço-homem? Garra que se mistura em garra faz fera ferir-se em si. Sim. Em si. E o escolhido era apenas processo subjetivo. E a sorte será sempre inexistente.

Mas num processo mais amplo, fera que mora entre feras, sente inevitável vontade de
também ser fera. E ali eles se moravam, conviviam, e Leão que luta com leão, um dia sai ferido; Este ainda não era o caso. O que ele, nosso homem, muito-homem, fera-garra, era querer apenas subir andares.

***

Vamos, porém, para algo mais reconfortante. Um ritmo menos acelerado de si, pois aqui o mesmo não se vale. Pode sim se dizer que há um nome para este que se encontra em foco. Mas se um nome for dado, um tanto se deixará de existir em função das várias possibilidades de nome que há por aí. Sim, para ele há um nome, um nome que é só seu, um nome que o compõe como parte de uma identidade com o seu próprio mundo, mas ele mesmo não o quer ser visto como identidade, ou com identidade. O que ele quer é, pelo menos, uma vez ser visto como um todo no mundo. E por tal respeito, assim se cria o nosso menino-homem em apenas isso, Menino-homem. E passa a ser engraçado como tudo se cria. Não querer o próprio nome compondo a própria existência é negar de si a própria existência. Mas é na própria negação que o homem encontra a própria resposta para a vida: o puro direito de escolha. E já que se escolhe o inominável, assim se faz o nome de si, um Menino-homem. Um sutil paradoxo.

E aquele dia seria mais um com várias aulas a serem dadas. Precisava mostrar àqueles candidatos a um único posto na empresa que já havia um escolhido. Era apenas a segunda semana do ano novo e nesse período, nos últimos três anos, não pôde sequer curtir o período das férias da esposa. Para um casal novo e cheio de esperança da vida que há de se criar por eles, isso pouco importava, o bom era que estava empregado, havia uma boa renda e não faltavam as coisas para uma boa vida. Isso já era o conforto para um bom início. Era uma quinta-feira, penúltimo dia da competição. A vaga era para assistente em advocacia e, desde o início da semana, sete haviam sumido. Três por escolha da própria empresa, pois logo na segunda eles não houveram de ser avisados para o começo do curso na terça. Outros dois não vieram na quarta e já na quinta, outros dois também não compareceram. Para um curso como esse que avalia perspicácia, falta era intolerável. Hoje, o nosso apenas homem-imagem precisava mostrar alguns cases de vitória da empresa sobre alguns processos. O papel dos poucos grupos era tentar encontrarem falhas naquelas vitórias; situações que poderiam levar a empresa a uma possível derrota, mesmo com a vitória nas mãos. E depois de um tempo certo de discussão, houve as apresentações.

O fato não estava no coletivo. O premente se dava na maneira como os indivíduos conduziam suas capacidades. E mesmo no sonho da vitória de acertar a derrota ou criar a perspectiva da derrota, o destaque sempre se dá para um. E por isso, no assombro do receio de se surgirem palavras inadequadas, há o mais sutil teor do medo que qualquer um pode sentir: o fato de ser avaliado. E não havia um naquela sala que não estava assim o sendo. E mesmo o homem-nosso-imagem representar todo o teor desse medo, ele também assim o é, por aqueles todos ali e pelos que possuem o poder da caneta. Quem pode, representa-se; quem não pode, assim se me o faz, representando sempre. E dessa maneira as pessoas nunca sabem que são realmente. O problema de toda avaliação, por mais clara e criteriosa que seja, faz-se sempre sob uma percepção única, subjetiva. É nesse ponto que ela se perde, e uma vez não se tendo, o que faz, então, o escolhido ser realmente o melhor?

Não responda, você, o direito da resposta. Até por ser um tanto óbvio demais. Há um quê de diferencial, porém, quando se analisa o papel dos vários todos. Naquela sala, sabe-se que um se destaca. Destaca-se por uma questão de pura relatividade, não há outro que o supere, ou que detenha os predicados escolhidos como certo ditados por aquele que criou os predicados. Há também a inexistência de um outro que se destaque, não agora por deter os predicados, mas por não ser capaz de conseguir superar o um. E assim se destaca o um, na soma figurativa de todos os fatores. Não se esqueça que há naquela sala a soma de vários medos, e um deles é descobrir um que seja o melhor e que depois não seja melhor do que aquele que o escolhe. Um por todos. E o fim da quinta-feira se dá na certeza do que havia desde o dia anterior. A sexta-feira será apenas a figuração de um protocolo.

Uma das características que o tem feito como parte de seu destaque ao longo do tempo em que está responsável por encontrar “novos talentos” foi descobri-los em bem menos tempo que os outros. Parecia ter aquele famoso olhar clínico capaz de bisturizar os escolhidos em meio a uma multidão de incapazes. Enquanto que antigamente, com alguns outros antigos funcionários que ainda existem na empresa, um processo de seleção levava pelos menos duas semanas até que todos os números e avaliações fossem realmente feitas; já o nosso, ele consegue sabê-los em menos de três dias. Esse escolhido – alvo futuro – na quarta-feira já preenchia os requisitos. O bom disso tudo se dava na economia. Não será necessária a ligação, pois, na sexta-feira, o mesmo avisado será da escolha e em plena segunda seu início haverá. E nunca, por sorte, houve dois em igual capacidade de preenchimento. A sina do mundo está sempre em encontrar um em meio a vários. E esta tradução do “só o mais forte sobrevive” é naturalmente antiética no mundo corporativo.

Pode se dizer que há outros que não acreditam nessa capacidade de percepção do nosso-Menino-homem. Muitos até afirmam que ele apenas o faz rapidamente, pois não quer perder tempo com o trabalho sério. Como nenhum dos que passou nas seleções depois não deixaram a desejar, os comentários passam apenas como meras especulações. Mas toda especulação um dia apenas espera um fato para se tornar verdade. Essa especulação, fenda-motriz para subjugar capacidade, é o que se pode de um dia se chamar de fofoca. E passa pela máxima de um mundo: mentira muito afirmada passa a ser dada como verdade. E hoje, qualquer verdade criada pode ser vista como verdade. Mas a diferença do que nosso Menino-homem pode se valer é que suas escolhas em nenhum momento deixaram a desejar, e por mais que um dia deixem, elas foram cruciais para certos momentos da empresa, e aí reside sua capacidade, todos seus escolhidos formam em suma uma peça fundamental em algum momento específico da empresa. De especulação à verdade, nisso há um abismo. Mas não se há de ficar por aqui para exemplificar a capacidade de nosso moço. Todos somos únicos em meio a tantos outros diferentemente iguais.

E hoje há a sexta-feira. Muitos vieram, porque havia a chance de um deles ser o tal. E o melhor que se dá nesse dia é a sutil humanização daqueles vários pares de olhos. Uns mais, outros menos, não há como negar, mas há uma singela humanização daqueles vários por sofrerem do mal da esperança. Sim, a esperança é um mal. Ela boicota qualquer máscara de superioridade. E naquela sala, naquele dia, havia uma onda de boicotes. Havia não mais do que sete candidatos, sete por vaga, não sete unidades, ou sete possibilidades, mas sete pessoas. Sete pares, sete boicotes. Alguns mais sufocados, alguns mais brancos, mais descoloridos. Um desconforto que humaniza. Que bom. Pois humaniza. Na verdade, aqueles olhos lembravam crianças que desejavam um brinquedo, que quase choravam sem motivo. E na mão daquele que escolhia, havia a maior faceta da delícia, pois ele tinha o poder de escolha. Para ele, era um sorriso estático, irretocável, quase inquebrantável, que assustava ainda mais os boicotados. A humanização dos vários sete era potencializada por aquele sorriso. Não era somente a ansiedade deles ali exposta, era a vontade de serem aceitos por aquele clã macho-capitalista. Era o sorriso do macho-alfa, adornado por vários outros funcionários também macho-alfa, e todos aqueles outros esperando serem escolhidos. O um. O outro. A Ying. O Yang.

Por ser ainda de manhã, muito cedo, oito, os avaliadores mostraram como seria a dinâmica daquela final de avaliação. Não mais do que um texto escrito individualmente, mas que deveria ser lido por um outro, e esse outro a ler seria escolhido por aquele que escreveu. Era uma maneira de avaliar identificação e proximidade ao longo do que a semana pode criar. Há, sim, como criar um certo ar de companheirismo em avaliações semanais. Alguns até continuam uma amizade, cativam algo mais duradouro. Em função do estresse da busca por um emprego, desta inicial confiança que surge, aparece algo que seja duradouro quando se vive uma violência sem feridas, mas máculas fortes. A potência de uma amizade é fincada sempre na maneira de se vencer a violência, daí vem esse elemento duradouro, forte e ao mesmo tempo singelo e delicado; algo que o homem – macho – vem a chamar de fraternidade. E muitas fraternidades surgem nesse pilar, como forma de identificação de superioridade de caráter ou o que mais seja válido. Ou melhor, a eterna necessidade de grupo.

Mas muita filosofia tende a virar sub-filosofia. Literatura sub-literária. É a força de todas as vontades, daquilo que é magnânimo e forte, intransponível a indescritível. E lá no topo, lá no alto, altar de máxima magnitude, existe o abismo, a fôrma, ou fórmica, o delicado do indestrutível. E mesmo no figurativo, há uma rachadura que desfacela tudo, bem lá no alto. E tudo que abre caminho para o alto, deixa um rastro para baixo. É o papel do início, do fim, que gera um exemplo, e cerceia uma escolha de semelhantes. Quem o faz se torna único, pioneiro; e aí figura o delicado da rachadura: se alguém fizer semelhante ou parecido será chamado de plagiário. Sub-filosofia. E dessa maneira correram vários textos, um com mais palavras, outros com mais força, mas mortos na escolha já pré-estabelecida. Não houve algum que pudesse se destacar, nem mesmo o daquele lá figurado na posição do escolhido, todos foram alvos de avaliações. Mesquinhas. Subjetivas. Mas pelo menos foram avaliados.

E no final da manhã, quase uma, duas salas, dois grupos, um dos que não passaram em teste algum, e um outro que tinha chance. Lá o escolhido foi mostrado, e na segunda-feira ele já iniciaria. Sub-filosofia. Um brinde aos vários todos. Fim do boicote.

***

Era sua sala. O final de uma sexta-feira. Menino-homem se recompõe de mocidade e principia a busca pelo seu eterno ar. Ali respirava um toque de jovialidade ou uma singela força de calma. Tirou o paletó como figura maneira de se despir de si mesmo. Deixara-o na cadeira, ou nas costas da cadeira, como se realmente desdenhasse. Ali sentou, também de costas para o paletó. Persianas da frente fechadas e apenas a janela aberta. Deixava propositalmente o ar condicionado sair, era o lugar se limpando. Com o ar condicionado, ia também sua dor de cabeça. Sem remédios, café ou massagem. Era uma sutil extinção. Tirou o telefone do gancho por alguns minutos e não havia recado de sua esposa, não que desgostasse da falta de recados, mas precisava de um momento só dele, sem as responsabilidades de sempre. A ambição tem um preço alto e às vezes esse valor é cobrado sem prestação.

Nem viu que se passou uma hora sentado naquela cadeira, apenas curtindo. Foi despertado por sua secretária, que pelo viva-voz deixou um recado de bom fim de semana. Educada, nem ao menos abriu a porta por questões óbvias. Ele precisava estabelecer alguns critérios para um novo processo de avaliação daquele que fora escolhido, mas os criaria somente na segunda-feira mesmo, usando seu feeling. Nem mesmo iria levar trabalho para casa, não dessa vez, pois a esposa tinha pedido. Queria aproveitar um pouco do fim de semana, deixar os filhos com a mãe dela e sair. Há muito não faziam isso. Sim, isso mesmo que pensas. É o peso da responsabilidade do mundo, que te avalia pela maneira como supera obstáculos, mas sempre há um lado que sai perdendo e que um dia cobra. Não poderia levar trabalho para casa no fim de semana, ia ter que adaptar antigas produções.

Os critérios de avaliação são sempre os mesmos. Mas, por uma busca não só de objetividade, e sim pelo máximo da perfeição, eles deveriam ser adaptados a cada avaliado. No caso do garoto que fora escolhido, pouco mudaria daquele do último grupo, só que precisava ser apresentado depois para a comissão formada nos Recursos Humanos que acompanha o processo de escolha. Isso sempre acontece no fim da segunda-feira, e ele sempre assim o faz. Dessa vez, porém, iria camuflar a própria preguiça. Bem, não era preguiça propriamente dita, mas não ia voltar ao trabalho depois de ter tirado o paletó. As dores de cabeça seriam outras. No carro, a melhor música. No posto, uma garrafa de cerveja e um bom cigarro, pois ninguém é de ferro. Ali, todas as auroras são só uma. Um só brilho, um só gosto. É no caminho para casa no último dia da semana que muito do desgaste se esfria, muito da família se cria. E nem mesmo os acidentes ou os outros níveis de violência visíveis que te cutucam a janela do carro podem te corromper aquela doce paz. Aqui, as estórias são outras, os parágrafos são mais simples.

Há a própria chave na porta. O carro vai esfriando no retoque da noite. Há os passos daquela sua criança e atrás, a mãe. A bela e eterna mãe do seu filho, vestida de mãe e dona de casa, sem todos os aforismos de uma propaganda de margarina. Eram sorrisos amarelos e cabelos desgrenhados. E nele havia um quê de inveja, por poderem estar assim há bem mais tempo que ele.

***

Não deram mais do que três horas de sono quando a responsabilidade o cutucara. Depois de mais de uma semana havendo de lhe em si a figura da eterna responsabilidade, não poderia errar tão ferozmente em não produzir o material com os critérios corretos para a avaliação. E se lhe pedissem tudo logo quando se chegasse na segunda e não o houvesse? Aí sim haveria motivo para questionarem sua capacidade íntima de avaliação, de bisturizar os plenos escolhidos. Não podia dar motivos para que o retrucassem, não podia deixar surgirem os argumentos contrários à sua capacidade. Era muito novo para ficar demitido, era muito velho para errar um erro tão grotesco. Em ambiente de trabalho, todos os amigos são inimigos invisíveis, e nem um deles era confiável. Mesmo os mais próximos podem ser aqueles que ali estão para saberem como questionar intimamente seu trabalho. Não existe conselho sem preço, e mesmo aqueles que o aconselhavam sabiam plenamente onde ele errava. Não podia dar os motivos do erro, não agora, tão novo e tão conceituado. O conselho é o preço inverso que se paga quando muito se confia. Os que aconselham se julgam superiores; os que são aconselhados estão sempre muito próximos do erro. Mas conselho dado a si era a melhor maneira de se chegar à perfeição. Uma vez viu que aprender com o erro dos outros era sempre a melhor sapiência. Estava ali sendo sapiente? Ou meramente medroso? O status do poder te confere um medo muito próprio. Todo ponto de altura gera uma queda longa. Não podia se dar ao luxo da queda, ainda mais agora que a família já se acostumara àquele padrão de vida. É a nova escravidão. Escravo da própria circunstância, da própria capacidade. Uma vez ali, dali não se pode sair.

E assim foi digitando até quase o raiar do dia. Pegara o arquivo no servidor da empresa, fizera os relatórios necessários sobre a semana anterior e desenhou os critérios a serem usados com o novo funcionário. A empresa levava a sério o período de quarenta e cinco dias que o empregador pode usar a seu favor com novos funcionários. Era pouco mais de cinco da manhã quando conseguiu terminar. Exausto. Fatigado. Nem conseguia acreditar no fim do arquivo. Salvara-o em três locais diferentes para que o pior não acontecesse. Já diz a modernosa teoria, se algo de ruim pode acontecer, sim, ela vai acontecer. E ele não queria dar chance ao caos.

Mas a via dupla de ter sido acordado pela responsabilidade também cobra seu preço. Seu filho, com o farfalhar da digitação acorda e cobra do pai o carinho de sempre. E ali se extinguiu o sono, e foram brincando o máximo que o garoto conseguiu. A mãe, esposa-mulher, máquina-cronômica dos hormônios, cobrou pelo olhar a irresponsabilidade do trato não cumprido e fez o almoço às pressas, como parte do julgamento ao marido. Menino-nosso sabia do erro, mas não errara completamente. E no seu íntimo, todos os argumentos cutucavam sua índole ferida. E por mais que quisesse falar, como homem, o comum, preferiu o silêncio à conversa propriamente dita. E o hormônio feminino afirma, lá se cala quem consente. Era o óbvio de todo casamento. Mas se dava por vitorioso por ter encontrado uma mulher que não suspeitava dele possuir amantes, e nesse caso era realmente melhor ficar calado do que perder a esposa tão falante. Pelo puro desassossego de sua esposa, um pouco do almoço foi perdendo o gosto, precisaria, naquele então, pensar em algo que pudesse mudar a situação criada. Pediu no mais rápido instinto que todos se arrumassem, que iria levá-los a uma surpresa, e assim re-ganhou o delicado do sorriso dela. Uma boa escapada era a chance para carinhos mais aconchegantes.

Juntos foram a uma exposição. Nada que o alegrava, mas ao ver a empolgação do menino, todas as vontades mais próprias se transformavam em um recôndito do sorriso mais puro que podia obter dali. Era lindo ver o menino apontando para tantos lados, para tantas curiosidades, e os seus Olha ali, pai, olha só, mãe ganhavam o tenro toque da pureza da vida. Entendia de uma vez por todas as palavras sobre paternidade, os conselhos – neste caso, os bons – sobre a dimensão da graciosidade em ser pai. Mas sabia, no seu sempre, e dele não fugia, que haveria o fim daquele momento e que deveria voltar o quanto antes para a composição daquele texto que ainda figurava em sua cabeça. Era o tempo, o senhor das razões, que o procurava sempre.

Ao mesmo tempo em que gastava aqueles doces toques com sua família, entendia da dupla importância do momento. Para alguns, não há nada mais do que suficiente o próprio estado da vida e da manutenção da mesma. A vida passaria, neste caso, a ser uma consistência de dias e persistência no próprio mundo. Para outros, ou até mesmo para muitos, a vida não é persistência, mas tentativa de construir auroras. Auroras estas no puro sintagma do egoísmo. Tudo seria baseado na criação de um universo próprio, fruto do instinto de soberania – ou julgamento do mesmo – e a família seria meramente um adendo para este estigma. E deste ponto, ter-se-ia estipulado história, história própria, tudo somente para o bem-estar de si. Ali, de mãos dadas com o garoto, há tanto o martelo íntimo pedindo o retorno para seu texto, como há também a lembrança de um bom momento com o filho. Aquele seria um garoto que veria o pai como o melhor homem paterno, porém aquele seria um homem cansado, por ter pouco dormido e que colocaria em xeque sua reputação de prodígio. Mas o que era mais importante? Nos dois casos, o caminho é o mesmo: ser visto como bom. E estava na hora de equilibrar um tanto. Preferiu dar mais tempo ao filho, depois voltaria à própria aurora.

E por pouco mais do que duas horas de passos, aquela exposição houve de ser vencida. Nenhum dos três mais agüentava ver aqueles tantos expostos, nem mesmo mais agüentavam o júbilo da união familiar. Ele precisava voltar, ela sabia da louça a ser lavada. Para o garoto havia a saudade dos brinquedos no quarto, e seus olhos já brigavam com ele. Assim construiu um fim de tarde, e assim foram para o carro. Ele, nosso homem-um-tanto-de-peso-responsável também sentiu a força do cansaço. Viria a acordar boas horas mais tarde. Sobressaltado da sinceridade dos ponteiros, pouco conseguia se concentrar para escrever. Mas assim o fez, também sobressaltado. Ficou até com medo do resultado, e não se deixou vencido, não deixaria para sua história o indelicado frio do erro e voltou ao arquivo, ao texto a ser produzido. Ali se leu nos erros, viu infantilidades a serem vencidas, não se reconheceu. Era texto de resplandecer ingenuidade, a mesma que não lhe era compatível por mais. E assim se recomeçou, vacinando. Perdeu a síntese das horas e foi força diante da máquina em que se debruçava.

Mas nem todo peso de responsabilidade pode vencer a certeza orgânica. Todos dormiam, menos ele, só que seu cansaço era mais forte e não conseguia pensar. Era o sabor da derrota duplamente sentido, o cansaço somado a sua falta como trabalhador. O texto não fora produzido em sua plenitude e nem tinha mais força para fazê-lo, deveria dormir com todas as suas angústias bem vivas. Nem mesmo se lembra de como chegou à cama, mas pouco teve a sensação de ficar lá. A falta de força é o reflexo do desrespeito ao corpo e ainda vê-los dormindo o destruia ainda mais.

Não o reconfortava também saber que todos em seu trabalho também falariam o mesmo. O discurso contemporâneo da eterna canseira não o aliviava, como todos, era apenas o reflexo das várias considerações mundiais, e não podia ser vencido, por isso, como os outros, esta tinha se tornado parte intransponível dele.

Era a segunda de todos cansados, de todos mal dormidos, a fundamentação da raiva pela segunda-feira. Não à toa se odeia a segunda. Coitada, era apenas um dia vítima, e como vítima, resignada aceita. Aos poucos todos foram chegando, rastejando-se bem vestidos. Alguns poucos não se mostravam vencidos, poucos a se contar nos dedos. Em sua sala, apenas o forte ar condicionado dava sensação de alívio. Tinha não mais do que meia hora para receber o por-sorte-apenas-própria escolhido e destiná-lo às suas sombras. Seu brilho, o deste novo, seria construido por si, e não mais do que a si mesmo, um plural toque de sua singularidade. Porém, por dez minutos – a serem cronometrados – ainda ali nosso homem-desgaste não estava. Era para se energizar, como qualquer aparelho, precisaria daqueles dez minutos, mesmo sabendo que se esgotariam.

Esgotado.

Senhor, o trainee chegou. E assim se tocou do dia, nosso menino-moço aos poucos retoma todas suas faculdades e se posta diante de sua posição, Me dá um minuto. Aos poucos foi mostrando o que era a empresa e o que realmente faria. Pelo nosso rapaz, a idéia era substituir um dos advogados que já estava para se aposentar, ele mesmo daria a papelada de presente, o aposentaria sem que se soubesse a aposentadoria – para alguns era uma demissão disfarçada, compulsória, substantiva – e pouco o aposentado conseguiria fazer. Não haveria de dizer isso ao novo rapaz, pois sua juventude ainda não estava toda tomada pela ganância de ganhos hierárquicos, mas aos poucos o colocaria no tabuleiro, o faria ser peça importante.

Neste ponto se faz missivo saber por que nosso homem-moço deve ainda ser chamado por tal. O tratamento não deve ser fruto resultado da interpretação imediatista, mas quantitativa das épocas destas auroras próprias – ao mesmo tempo sofismáticas, auto-mentiras. Nosso homem não tem dos tantos vinte e oito anos. Criou-se como homem por ali desde os vinte e um anos. Deu pouca sorte como alguns, pois veio na última turma de estagiários, agora todos são trainees – só entram depois de formados. Porém, ainda deve ser visto por menino por acreditar no total de sua capacidade, é neste ponto que se reside ingenuidade. Perceber os dois no mesmo ritmo de passo não era somente ver coroado e coroador, mas ver a dupla crença de superioridade, um a saber que precisa provar muito, o outro a analisar, somatizar e pontuar aquele que ali está na pompa do troféu empregatício. Era esperto o nosso ao escolher alguém que fosse capaz de crescer, sem suplantá-lo. Dava-se ao luxo, egoísta no entanto, de suplantar um outro, aquele que não se deve mais como um, pelo tempo no porém, há de ser aposentado e deixá-lo extinguir pelo crepúsculo da velhice, pelo óbvio caminho da vida. E também por este o óbvio, ainda é menino, pois bom funcionário que é, tornou-se peça fundamental na máscara da manobra da empresa. Esta não erra, em tempos modernos, não se pode dar ao luxo de errar, mas se fosse um erro aposentar este a ser aposentado, que o erro fosse de quem o aposentasse. A falta de peso na consciência de nosso menino-moço não deve ser vista como reflexo da tradução de sentimentos e valores típicos no mundo corporativo, mas sim como a fundamentação de sua cegueira, ou agnósia, como justificado por José em um outro livro. Menino-moço é ainda menino-moço, por se ver como peça maior no tabuleiro, mas não passa de peça simples.

Aliás, no remoer da sinceridade, todos não passam de peças simples. Poucos se dão ao luxo de se destacarem no tabuleiro, ou até mesmo de criarem o tabuleiro, mas como tábula, pedaço, há o limite do espaço de atuação, e ali, criador da criatura também se reduz, tornando-se uma qualquer peça. Finito. Clausura. Não mais do que isso. Mesmo nosso menino-moço tornando-se moço-rapaz como é, ou rapaz-homem, como já dito, crescendo-se de importância na empresa, nunca deixará de ser uma peça qualquer. Como todos são ali: um universo de peões em uma tábula de guerras individuais.

Perto do último andar, não o último, nem o penúltimo, está o ambiente dos conselheiros. Foram eles que definiram a necessidade de sangue novo na casa. Alguém com certos requisitos específicos – não há a necessidade de expô-los aqui, pois são sempre os mesmos, restritos a um único fator: dedicar inteligências, ou dar margem para se escravizar – e que ali estava o novo funcionário, traduzido e individualizado, personificado em um nome somente, como queriam os senhores. Este é o nosso novo. Bem-vindo, qual é o seu nome?, depois de totalizadas as educações de boas vindas, há o que pergunta, Como pretende agir em nossa empresa?, e a desértica deglutição da pergunta deve ser contraposta com a suavidade gelificante de um bom copo de resposta, gelado no ponto certo e refrescante na audição, e assim se fez, Agindo com firmeza no momento certo, com discrição em outros, era a dose, sem mais nem menos. E dali se volta ao terceiro andar, um antes: o primeiro, a recepção, o segundo, serviços gerais, arquivo e atendimento direto a clientes. No terceiro ficavam os funcionários graduados, contadores, analistas de todas as naturezas e os advogados. No quarto andar estavam os líderes do pessoal do terceiro e suas respectivas secretárias. Havia também uma sala com monitores para inspeção dos outros andares inferiores, do qual poucos sabiam, raros eram aqueles que usavam os monitores, mas havia aqueles que usavam. Apresentado ao seu andar, foi levado ao seu grupo e ali realmente integrado à empresa. No meio de feras, há inevitável vontade de também ser fera. Foi recebido com abraços e garras, o de usual. Pouco poderia ser feito.

Antes do final do expediente, retornou àquele andar perto do último, não o último, nem o penúltimo, mas desta vez todo o pessoal destes outros andares ali estavam para analisar os critérios de escolha do novo. Texto bem digitado, houve-lhe de lhe em si a fórmica menção do horário para a escrita, e assim o pôde encher de qualidades para ser visto como texto único, adornado de critérios que vislumbram as metas definidas para o ano. Naquela mesma reunião, estas foram mostradas, discutidas e reprimidas. O novo, porém, não precisava sabê-las. Teria contato com elas no mesmo período que os outros, quando não mais houvesse o que ser rechaçado. Depois de mais um dia de brava gente, havia de retornar ao conforto da casa.

***

Com mais uma noite intranqüila de sonho, bateu a lembrança do peixe. Acordara com um toque tão igual e forte àquele que quase o empurrara para dentro do rio. No entanto, não havia ninguém por ali, nem muito menos havia a mata. Estava escuro, densamente escuro, e sua respiração estava pesada. Sentia que algo o encurralava, limitava seus passos e seus movimentos. Não havia um foco de luz sequer que pudesse olhar e ter uma breve noção de onde estava. Só se sabia acordado, mas não conseguia mexer as mãos para ir acender a luz ou pelo menos tirar o que lhe cobria os olhos. Passou a gritar, mas a densidade do ar impedia que o som se pronunciasse. Estava no mais completo silêncio, no mais completo escuro, e percebeu que pouco era o ar que voltava aos seus pulmões. Era um ambiente todo limitado, íntimo e limitado, do qual não podia abusar. Tentou buscar a calma, mas a voracidade de sua adrenalina o atormentava o peito. Percebeu que o ar se extinguia com muita rapidez e fechou os olhos para se concentrar e realmente ficar calmo. Foi nesse momento que escutou seu coração, num ritmo frenético e débil, incapaz de ser controlado. Sentiu também que algo passou a inundar sua boca e não adiantava fechá-la, pois o líquido vinha de dentro. Pelo forte gosto de ferro, era com certeza seu sangue. Com a força dos batimentos, a adrenalina, alguma artéria devia ter estourado, por isso a cegueira, o grito opaco, tudo estava entupido, o sangue já não chegava ao cérebro e logo iria morrer. Passou do medo à inquietude da certeza da morte em pouco mais de um segundo e chorou resignado, pois não teria a filha com que tanto sonhara, não conheceria os netos e certamente a esposa casar-se-ia com outro, linda do jeito que era. Só que não tinha como saborear o seu último momento, tamanha a volúpia daquele assassinato. Não teria como escrever uma carta, deixar um algo sobre o tamanho do amor que tinha pelos dois, nem poderia pedir desculpas pelo tempo que dedicou mais ao trabalho do que a eles. Como se arrependeria agora, como gostaria de trocar todo esse tempo por apenas um beijo cada. O sangue já jorrava por seu nariz, assim o sentia.

Deus, ou talvez não, demonstrava-se em pequenos detalhes. Inundado e limitado, algo parecia de desenhar em seus cabelos. Parecia uma trégua ao momento de sua finitude e assim julgava serem os dedos de sua esposa, ou possivelmente sanguessugas tão espessas e firmes a se aproveitarem de seu sangue em caldas. Sentiu um arrepio a correr-lhe a espinha, um frio misto de emoção forte, sutil, vivo e premente. Porém, teve verdade em seus cabelos, eram dedos, fortes por sinal, que o puxavam. Renitentes, faziam um força que parecia descomunal, com a vinda de mais outros, conseguiu retesar o sangue e seu nariz pôde sentir um ar menos denso, menos calamitoso. O mesmo se fez em sua boca, e naqueles dedos havia luz, peremptória, mas uma luz.

E então algo lhe tocou com força no rosto. Não era delicado, pois causou dor. Outro toque, com mais força, mas não era um soco, pois a dor estalava. Passou a escutar finamente um trompete que resplandecia tanto um choro lamurioso de uma criança e a agudeza gritante de uma voz feminina. De outro toque forte, de trompete lívido foi-se ao trombone, dando mais ressonância ao choro da criança. Como outro toque, já não havia o som, mas a coloração azul cintilante adornada de brilho espesso do choro menino e a firmeza vermelho púrpura dos gritos sibilantes de uma mulher próxima.

Tá louco, homem,quer morrer afogado?, Papai, não se mata não!, e firmemente ela o tirou daquele rio de banheira, a inundar-lhe a casa. Não se pode ser peixe sem rio, ou sem praia, mas o sono foi quase sua corrosão por completo. Sentiu o baque nas costas ao cair no chão do banheiro, arrastado por uma força descomunal. Sentiu-se puxado por algum espaço sem precisão de local, mas saiu do molhado gélido para o calor um tanto reconfortante das tábuas que adornam o resto da casa. Não conseguia se levantar, a opressão daquele ambiente ainda o consumia, o limitava, mas já sentia uma outra pessoa, fraca, firme de que não morreria. Com isso adormeceu, risível e calmo, na esperança de que aquela noite ele possivelmente teria um sono tranquilo. Ao fechar os olhos viu o peixe, pulando do rio para a margem em que um dia foi encontrado, a olhar para cima, extasiado, também risível, parecia feliz.

Agreste do Espírito

Um dia, o choro não veio
não caiu uma gota sequer
Parecia seca a fonte
Parecia a morte no horizonte

E lá mesmo não havia a saudade
E o Sol parecia tão frio
Tão distante o antes eterno amigo
Que agora fora está

Parece o Sol, o antes amigo,
não querer mais me esquentar
Pareço não mais merecer
o calor que vem de você

Diga-me o que fiz de errado
para me renegar o abraço
deste amigo que tanto precisa
de ter seu mais sincero afago

relembre para mim nosso tempo
em que meninos pequenos éramos
você apenas uma sombra aurora
e eu a pureza da infância

E agora nada mais na cabeça
a não ser a ganância dos tempos
você aproveitando calor
e eu aproveitando os calores

Nesse tudo, o mundo se perde
e por mais que dinheiro se mede
a capacidade da estupidez social
sou seu amigo e você o meu mal.

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Invalidez

Férias: período de inanição, algumas idéias, poucas, mas firmes. Mas nada a ponto de preencher isso, a não ser com sinceridade. Inválido, não? Ou não...

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