Ela estava em paz, bem consigo mesma. Nada mais poderia lhe despejar uma gota de tristeza. Estava diante do vidro mais transparente do mundo, nem parecia que tinha vidro ali. Ria o último riso de boca risonha. O mundo agora é outro. Mais justo, um pouco mais que tudo. Começava a entender que agora as coisas serão diferentes. Irreversíveis. Seria um mundo de sombras novas, sombras brancas, como fumaça de café quente. Sentia isso na pele, que tocava vento leve, só sentia, entendia, porém, tudo, na desrazão do pensamento. Era isso que estava voando por ali. O mundo agora era menos desacreditável. E por menos que pareça, seus olhos possuem uma nova capacidade de enxergar.
Mas ela não podia piscar. Via como tudo era medonho ao cercear a entrada de luz em suas pupilas. Era castiguento fechar olhos e ver tanto horror, ver tanta gente sofrendo. E era isso que estava bem ali, no escuro dos olhos, sofrimento de gente grande. Não parecia ser coisa boa, mas pela paz que sentia, pelo silêncio que ouvia, por toda boa solidão que a acomodava, resolveu encarar escuridão de tristeza. E firme fechou os olhos.
Escutou os vidros quebrando. Era gente chorando lá no longe, abraçada. Era lágrima de gota de rio, em beirada de degrau. Vinha em enxurrada, gota que desce suada na pressão de olho que não quer ver. Reflexo de cachoeira de alma, brilha do brilho, o brio da saudade. Esmerando pensamento retinto, era saudade que toda aquela gente chorava. Parecia uma desgraça grande, das fabulosas, para tanta gente chorar junta em canto de casa fechado. E era a maior de todas. Eram todos de preto, e ela estava ali, de branco. E se viu como única menina que não chorava. Presa no redemoínho da luz, cárcere do vidro que não fere o fausto tato daquelas pessoas. Era a única que ria, risada de face boba, como se sentisse uma sonolência gostosa. Escutou os vidros se quebrarem ainda mais. Entendia agora o silêncio pacífico. Era sua carne afrouxada de divindade deitada no meio. Era sua pessoa trazida para o divino mais próximo. Era um fim. E logo se viu, de novo, lá, no vidro, abrindo os olhos. Viu se vindo visto.
E lembrou, então, dos doces carinhos de sua irmã. Mais nova três auroras primeiras, que puxava docemente seus cabelos, fiando detalhe por detalhe, desenhando admiração em carinho. Lembrou dos dedos do menino, que jurava ser o último, no início da vida. Lembrou da ranhetices do pai – quem diria –, oleiro de vaso grande, artesão de fina arte, como ganhava sustento de todos. E a mãe, mulher de palavras fortes, mas tão sinceras e tão gostosas. E lembrou que do rio levava sabor salgado, sabor de vida que se desfoi. Abriu os olhos, a mesma paz sonolenta. Mas nos olhos, as lágrimas que cobriram o vidro tão transparente desenharam os rostos das mais inteiras saudades. E seria isso, somente, redução. Não mais os teria. Eram agora desenhos de lágrima em cobertor de vidro. Sentiu o vento se apertar, era hora de ir mesmo.
Das duas elas próprias que surgiram, deram-se as mãos. Carrocearam o céu inteiro, pulando de pulo em pulo, meninas de almas puras. Agora eram as próprias companheiras, solitárias meninas de uma só vida. No final, se viram e se abraçaram, somando-se. Elas não mais se veriam, mas uma bem sabia da outra. Da soma delas, a que sobra, sabe quem vai, sabe quem fica. E assim, driblam o fim nas lágrimas que corrompem a fórmica de qualquer rosto, aurora desfacelada, mas puro brilho de amor longíncuo.
5 comentários:
Meu deus, como eu amo esse conto. Acredita que li em 2006? =)
E, Calixto, pára de ser chato e passa no meu blog. =P
pode deixar, eu achei que tivesse perdido esse conto, perdido mesmo, sem sombra de chance ou reflexo de lembrança. E o achei. Que bom que gosta dele ainda.
Nossa, sério? Se tivesse falado comigo eu te passaria, eu tenho salvo! =D
Poxa, o que vc tem salvo da época das bagatelas aí? eu perdi quase tudo!
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