A dose do corpo
Uma vez mais era o irretoque. O irrespirável. O frio próprio. Era a falta de calor dos homens, era o tudo tão incompleto. Era sua voz-agulha cortando como espada. Era 1h45min da manhã.
Uma vez mais era o irretoque. O irrespirável. O frio próprio. Era a falta de calor dos homens, era o tudo tão incompleto. Era sua voz-agulha cortando como espada. Era 1h45min da manhã.
A Dose do Corpo (Com olhos virados pra fora)
Ele se forçava para subir os últimos lances de escada. Carregava o cheiro cruento do trabalho soturno de matar gente, embutido nos grossos rebocos caídos daquelas paredes velhas. Aliás, o mundo era velho. Tudo era destroço, era resto, era negro. As pilhas de escombros muros atrás consumiam a tranqüilidade dos restos humanos vivos transfigurados como bolhas sedentas por carne humana viva. Há anos era tudo feio, e ele era o último a tentar consertar.
Na primeira parede que via ao abrir a porta, havia o quadro de uma arma dizendo: “a salvação pode estar bem mais próxima”. Mas nunca teve a sorte do engano de uma bala. Era policial num mundo onde a polícia não salvava a si.
Porém, a corrupção que o tomava era a da saudade. Fora obrigado a matar mulher e filhos depois que o mundo se envelheceu. Havia novas divisões sociais e ele fora dos quatro o não contaminado. Não suportaria vê-los se transformando em câncer quando as bolhas em seus corpos estourassem. Estourou-os antes, matando por último a esposa, de quem sentia mais saudades e ainda o gosto de sangue invadindo sua boca quando atirou no último beijo. Até ali os escombros eram suportáveis, depois ajudou a colocar todas as cercas. O mundo era uma grande redoma de áreas não infectadas. Nas outras partes havia homens com cânceres a mostra. Deixados para morrer no soslaio da desilusão. Mas todos morriam aos poucos. Todos tinham noção do próprio limite de vida.
Para Sarcantus, nada disso era tão diferente. O que apenas o aniquilava mais era sua covardia em não se matar. Vendo-se ao espelho, barbudo, decrépito, magro, com cabelo desgrenhado e a arma tradicionalmente garganta adentro. Bart, seu gato, arrastava-se-lhe as pernas. E a arma era guardada mais uma vez. E por mais que relutasse, o seu único traço humano estava em matar pessoas.
Saia toda noite pelos fundos do seu prédio. Alimentava-se daquilo que não estivesse vivo em sua geladeira e pulava os frágeis muros da Divisão. Aprendera com o tempo que era melhor matar famílias inteiras de deformados ao invés de um só. Percorria ruínas algumas à procura de gente para ser salva. Viu duas crianças, gêmeas, com no máximo três meses de vida. Afastou o pano que as cobria com o cano esfomeado de sua espingarda e viu que a bolha no peito era nova. Se a ciência não tivesse desistido tão cedo, elas até teriam alguma chance. Criança quando explode, esparrama pelo chão. O barulho chamara a atenção de outros dois que correram, mas a perna de um não tinha mais capacidade de ser perna, e antes dela se destacar do corpo daquele corredor, Sarcantus fez questão de ajudar a natureza. Um riso no canto da boca o surge e os olhos trincavam-se ao entender a fundição de sua alma para aquele trabalho. Não se sentia nem leve nem pesado, sabia somente para onde atirar. Olhava pra baixo, o braço acompanhava o gosto da arma, que se conduzia viva, íntegra, soberba. Era um gosto único, discreto porém, ver pessoas explodindo, desintegrando-se. Gostava mesmo de atirar nos próprios buracos do câncer e, vê-los pulando na distância física da força, era de um prazer único. Foi o que fez com o segundo, ao presenciar que a vida já não era mais tanto a favor. Não mais possuía os lábios, os dentes estavam à mostra e o resto da face era corroída pela desgraça. Dava para ver como as gengivas também estavam cedendo àquela corrupção cancerígena. A arma sente o cheiro podrento e taca forte salvação. Sarcantus senta, vazio da munição graciosa.
Não se podia dizer que ali havia sido a melhor noite. Perto do corpo gelatinoso do salvo rapaz, dava para ver que aquele ainda era jovem. Em sua mão esquerda havia uma aliança reluzente, de prata, mas reluzente. Escutava ao longe o choro forte de alguém. Nas ruínas, as luzes eram de velas, e apenas algumas ao longe ainda brilhavam. Era um choro de mulher, escandalizada. Ele a tirou da mão do menino, passou a mão pelos bolsos e puxou uma foto. Havia uma família naquela foto antiga. Era de antes da guerra. Possivelmente ele era um daqueles meninos em meio a tantos outros meninos. Alguns estavam rabiscados, junto com os dois mais velhos. Deviam ser os pais deles. Com a unha, Sarcantus rabisca mais um, que possivelmente não fosse o deitado. Mas quem se importa com excluíveis? Era apenas mais uma nota em um boletim de vida, como há nos tantos boletins da delegacia em que trabalha. Sentado, escutando os choros, ele guarda a foto e a aliança. Vira a arma pra si, mesmo sem munição. Fica admirando aquele corpo sem vida, como se quisesse trocar de lugar. Sarcantus dorme, na esperança de que alguém saia dos escombros para tentar salvá-lo também.
Na primeira parede que via ao abrir a porta, havia o quadro de uma arma dizendo: “a salvação pode estar bem mais próxima”. Mas nunca teve a sorte do engano de uma bala. Era policial num mundo onde a polícia não salvava a si.
Porém, a corrupção que o tomava era a da saudade. Fora obrigado a matar mulher e filhos depois que o mundo se envelheceu. Havia novas divisões sociais e ele fora dos quatro o não contaminado. Não suportaria vê-los se transformando em câncer quando as bolhas em seus corpos estourassem. Estourou-os antes, matando por último a esposa, de quem sentia mais saudades e ainda o gosto de sangue invadindo sua boca quando atirou no último beijo. Até ali os escombros eram suportáveis, depois ajudou a colocar todas as cercas. O mundo era uma grande redoma de áreas não infectadas. Nas outras partes havia homens com cânceres a mostra. Deixados para morrer no soslaio da desilusão. Mas todos morriam aos poucos. Todos tinham noção do próprio limite de vida.
Para Sarcantus, nada disso era tão diferente. O que apenas o aniquilava mais era sua covardia em não se matar. Vendo-se ao espelho, barbudo, decrépito, magro, com cabelo desgrenhado e a arma tradicionalmente garganta adentro. Bart, seu gato, arrastava-se-lhe as pernas. E a arma era guardada mais uma vez. E por mais que relutasse, o seu único traço humano estava em matar pessoas.
Saia toda noite pelos fundos do seu prédio. Alimentava-se daquilo que não estivesse vivo em sua geladeira e pulava os frágeis muros da Divisão. Aprendera com o tempo que era melhor matar famílias inteiras de deformados ao invés de um só. Percorria ruínas algumas à procura de gente para ser salva. Viu duas crianças, gêmeas, com no máximo três meses de vida. Afastou o pano que as cobria com o cano esfomeado de sua espingarda e viu que a bolha no peito era nova. Se a ciência não tivesse desistido tão cedo, elas até teriam alguma chance. Criança quando explode, esparrama pelo chão. O barulho chamara a atenção de outros dois que correram, mas a perna de um não tinha mais capacidade de ser perna, e antes dela se destacar do corpo daquele corredor, Sarcantus fez questão de ajudar a natureza. Um riso no canto da boca o surge e os olhos trincavam-se ao entender a fundição de sua alma para aquele trabalho. Não se sentia nem leve nem pesado, sabia somente para onde atirar. Olhava pra baixo, o braço acompanhava o gosto da arma, que se conduzia viva, íntegra, soberba. Era um gosto único, discreto porém, ver pessoas explodindo, desintegrando-se. Gostava mesmo de atirar nos próprios buracos do câncer e, vê-los pulando na distância física da força, era de um prazer único. Foi o que fez com o segundo, ao presenciar que a vida já não era mais tanto a favor. Não mais possuía os lábios, os dentes estavam à mostra e o resto da face era corroída pela desgraça. Dava para ver como as gengivas também estavam cedendo àquela corrupção cancerígena. A arma sente o cheiro podrento e taca forte salvação. Sarcantus senta, vazio da munição graciosa.
Não se podia dizer que ali havia sido a melhor noite. Perto do corpo gelatinoso do salvo rapaz, dava para ver que aquele ainda era jovem. Em sua mão esquerda havia uma aliança reluzente, de prata, mas reluzente. Escutava ao longe o choro forte de alguém. Nas ruínas, as luzes eram de velas, e apenas algumas ao longe ainda brilhavam. Era um choro de mulher, escandalizada. Ele a tirou da mão do menino, passou a mão pelos bolsos e puxou uma foto. Havia uma família naquela foto antiga. Era de antes da guerra. Possivelmente ele era um daqueles meninos em meio a tantos outros meninos. Alguns estavam rabiscados, junto com os dois mais velhos. Deviam ser os pais deles. Com a unha, Sarcantus rabisca mais um, que possivelmente não fosse o deitado. Mas quem se importa com excluíveis? Era apenas mais uma nota em um boletim de vida, como há nos tantos boletins da delegacia em que trabalha. Sentado, escutando os choros, ele guarda a foto e a aliança. Vira a arma pra si, mesmo sem munição. Fica admirando aquele corpo sem vida, como se quisesse trocar de lugar. Sarcantus dorme, na esperança de que alguém saia dos escombros para tentar salvá-lo também.
Um comentário:
Que bom que Sarcantus não se atirou da janela aquela vez, há tanto tempo. E, embora ele ainda aponte a arma descarregada para si - e mesmo que o faça carregada -,não vai disparar, pois já sei o final de sua história: um dia ele estará nas prateleiras das livrarias, e eu, orgulhoso do trabalho de meu amigo, o comprarei para a biblioteca da minha escola.
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