segunda-feira, 4 de maio de 2009

Entornos de uma sombra aurora

Não era de lhe mais belo os antigos olhos, nem mesmo era assim a pele. Não era de lhe mais bonito os cabelos escorrentes ou até mesmo a elegância das roupas, havia envelhecido, por si, os anos da juventude. No entanto, estava muito aquém de ter atingido a velhice em si. Houve o puro fato de uma corrupção própria ao deixar-se re-cair fabulosamente nestes poucos anos que passou unicamente lendo. E por pouco, não mais do que um tanto pequeno, o céu daquelas obras imprimiu-lhe a velhice em olhos antes meigos. Não mais parecia o menino jovem ao ombro de um amado pai, energia que demora a se consumir de vida, mas que agora era reflexo do conhecimento adquirido de forma tão ab-rupta nas longas idas à livraria. Extensa por si, tornou-se extenso o conhecimento do jovem moço, que deixara de ser moço bem antes dos quarenta.

E por mais que o questionamento se siga, tornou-se senil, ou um pouco mais que senil, por apenas ter passado lendo e lendo, vivendo páginas e histórias de outros séculos, eternizados pelos números de vendas livreiras. E preso arquétipo naquele mundo paradoxo, viveu o que nunca lhe foi tempo. Foram cinco anos ininterruptos lendo a livraria da esquina do Leblon, local de todas as possíveis letras e fugas.

Por ter tido a chance de viver as leituras – herança de um pai que preferiu economizar a viver algumas mais intensas felicidades – largou o trabalho para viver os estudos que supunha ter deixado de lado. Tinha uma vultuosa soma no banco, economia desnecessária paterna, mas que agora se sabia vivida nos livros. E o jovem rapaz de vinte e sete chegou aos trinta e dois com um currículo de leitura de quase todos os consagrados, e apenas se consagrou como o homem oblongo à cadeira ao lado da imagem do Autor.

A leitura foi-lhe fuga no início para a desventura da lembrança daquele ombro, depois se tornou o caminho certo todos os dias, após o horário do almoço. E ali ficava acompanhado dos copos de destilados, cigarros, charutos e livros lidos. E também um punhado de folhas para anotação. As cadeiras ao lado sempre se cediam às mesas mais humanas, ficando o jovem perdido dos companheiros, anotando e catalogando frases e trechos. Era um homem de sabor pelo conhecimento, que desfiava tudo que podia apenas em folhas sem pauta, organizada nas prateleiras do belo apartamento na Dias Ferreira.

E não tardou mais três anos para que o estoque de grandes autores se esgotasse. Mesmo os mais lautos autores, best-sellers, prêmios Nobel ou outros tantos, um dia lhe vieram faltar compaixão e não tinham mais produzidos outros grandes livros. Não se sentariam mais com ele Rosa, Cabral, Torres, Cony ou Maupassant. Todos os novos consagrados, os antigos, sofistas, todos, esgotaram-se em não mais do que nove anos de leitura. Resultado de algo em torno de dez horas por dia, vivendo palavras dos outros. Porém, sabia-se que não iria se render a estudos feitos por estudantes de Letras, alguns apenas majorando títulos universitários, vendendo suas análises a bancas outroras; seus estudos eram seus, nunca delimitados pelos outros. Mas o limite feliz da conquista de ter ainda mantido lauta suficiência financeira – gastava pouco, pois não tinha contas exageradas, apenas se mantinha vivo para a leitura – agora se resumia ao triste encontro do limite, ou abismo, de já ter lido tudo produzido ao longo de uma humanidade. Viu-se obrigado a pedir a conta e às cinco da tarde de quinta-feira foi caminhar pelo Leblon.

E ali lhe era a intromissão. Andar por entre árvores e escutar vozes de alguma brincadeira. Nem bem se lembra de quando lhe incomodaram as risadas nubentes ou de algum jogo de criança. Viu que o mundo pouco mudara, e as mais sutis também não lhe traziam a força para uma nova percepção. Os carros eram estacionados. As calçadas eram esburacadas. E não no mais nada poderia se encontrar. Era como todos, mais um entre vários. Apenas sentia que ali nunca realmente fora seu lugar. Não custou muito para as pernas se cansarem. O roto boné francês – parte da indumentária intelectual da leitura – foi retirado por causa do calor. A testa, lisa pelo pouco uso, dava também os contornos para a força do brilho do Sol, que o oblongo jovem senil agora se deixava consumir. Sentou-se vendo aquele brilho, que há muito não o incomodava. Pouco se dava, porém, à lembrança daquele momento. As pessoas que ali se serviam de vida, andando ou caminhando ou meramente existindo, compunham-lhe a visão, como se fossem personagens antes existidos. Dava-lhe prazer ao ver que conhecia a todos, estereótipos de si mesmos, figuras iniludíveis que se constroem de mero acaso social. Eram os mesmos formatos humanos que corriam com poucas roupas, adultos e jovens moldados na própria insegurança de vida, e ali se suava como uma máquina sudorípara.

Ficou a imaginar o que faria daqui por diante, já que os textos haviam se extinguidos, e não ficaria a mercê de surgirem novos consagrados para continuar lendo. Sabia, porém, que mesmo os novos iriam escrever sobre as mesmas comiserações humanas que todos os outros grandiosos já escreveram. E que não haveria um novo ou alguém que se desfigurasse de filósofos, pensadores, ou quaisquer que sejam os existidos, que viriam a questionar a raça humana sob uma nova óptica. Aliás, sabia sim que nova óptica não existia. Continuou firme com o pensamento de que não releria os consagrados ou críticos literários diversos. Ficaria com sua percepção e ponto. Passou a andar as pedras da calçada, desviando-se daqueles infelizes que buscavam manter a forma.

Tal foi a caminhada que chegou a Ipanema. Lá viu um sebo, de beira de esquina. Os mesmos livros, e até mesmo os que se julgavam leitores. Sabia ali que iria encontrar um bando de pseudoleitores, adoradores de orelhas bem escritas, e que mal sabiam a existência dos vários autores. Ficou incomodado com a jovem vendedora, vestida em trapos escuros, que acompanhavam a desordem dos cabelos e a tristeza do cigarro. Era mais uma jovem detentora de um vaziismo intelectual, já assim poderia ver. Mais uma no meio de mais uns. O suor gotejava no moço uma raiva sua, típica sua, de alguém que viveu a juventude dos bons textos. As estantes apresentavam velhas Barsas, dicionários, léxicos universitários e mais um monte do seu puro conhecimento. Sabia de todos as boas frases, as boas construções. A bancada da vendedora era acompanhada de panfletos sobre estética cultural moderna – ou releitura com novo vocabulário – que nunca fez questão de ver. Eram besteiras de jovens outros pseudos. E assim mal se sabia.

Deu-se ao luxo, porém, de duas pequenas revistas sobre literatura. Papel-jornal, algo simples. E viu a mistificação de seu pensamento, jovens meramente escrevendo. E lá encontrou sua conformação. Mais um bando escrevendo sobre os mesmos temas humanos, usando palavras contemporâneas, algo que se quiçá julgaria literatura. Não haveria do que se consagrar, pensava. Leu as duas revistas, e não via a chance de um dia encontrar um bom novo autor.

De um dia a mais, havia o fim daquela quinta. Poderia até se dizer um novo começo, pois o que faria dali por diante? Fora ao chuveiro, e depois às anotações. Reviu a organização de algum de seus papéis e releu alguns trechos. Era a soma de uma vida, curta assim poderia dizer, mas era a sua vida naqueles papéis. Foi folheando-os com toda a sutileza capaz de alguém que sabia mexer com o papel, e admirava a folha por seu teor amoroso com a história e sua importância em catalogar a vida. E viu a lágrima que caiu sobre uma das páginas. Pegou-se chorando ao ver o limite tão novo somente, tão velho e limitado em si. E nesse caso, vieram-lhe as memórias, as incômodas, que os anos de leitura não conseguiram esconder. Eram elas a Macabéia da própria insegurança, a vírgula no início do parágrafo. E se viu Bentinho na traição do próprio mundo. A força da saudade paterna – vírgula aurora no esquivo de sua adolescência.

E num aparador perto da porta de seu apartamento, lá teve a sorte de uma outra memória. Encontrava-se, na sombra do pai, última foto vivida com ele algum sorriso. Foto em terra importada, não aquele lugar nacional. Segurava com o pai uma nota de dólar e um balão de personagem de história infantil. E percebeu o papel em sua mão, a importância dada pelo pai e tudo que assim se valia. Soube-se assim sua ação, força antes incrustada que lhe fez perceber a ignorância pura do seu indistinto mundo a todos.

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