A morte não é um palíndromo da vida, ou um acróstico das forças divinas; a morte é, na verdade, uma descontinuação. Ela é fruto do vício de se viver, das nossas necessidades de muito querer, dos excessos. A morte não é só o equilíbrio que há em tudo que existe. Para o barulho, há o silêncio. Para a noite, o dia. O início, o fim. A morte, como a vida, foge desses preceitos. A vida surge do excesso do pecado, da característica animal do amor e como ato de divindade, nascemos do entremeio do que expelimos. A morte não é só consequência da vida, ela é a libertação quântica da alma que se aprisiona de experiência. Quando chegamos aos cinqüenta, temos a clara convicção de que conseguimos viver mais. Temos nas mãos a supremacia de se ter vivido bastante e que ainda nos resta alguma força juvenil. Alguma. Mas aos cinqüenta, a última fase da vida adulta, ainda há a ideia de que nunca morreremos. E morremos.
Ou melhor, descontinuamos. Passamos a deixar de sermos pessoa com corpo e vivemos na inexistência da completude. Não há mais aquela soma, ou unidade; temos a dissolução. O problema é o tempo que isso leva da gente que aqui ainda fica. Sim, estou afirmando que existe alma, outro lugar e et ceteras, e que após isso aqui há um outro parecer de chance. Como disse, parecer, pois ninguém voltou de lá diretamente para contar. Mas essa semana as coisas passaram a ter um outro sentido.
Meu sogro faleceu. Depois de dois meses murrinhando sobre uma cama, ele não resistiu. Todo mundo teve a impressão de que ele desistiu da luta, não queria mais estar por aqui, apesar de todas as preces e rezas. Participei de novenas, grupos de oração, correntes de energia e o escambau, tudo pelo coroa. Queria também que ele estivesse aqui, mas depois do que vi sei que ele iria sofrer muito. Seu corpo era outro. Não me era aquele cara de certa vitalidade, rabugice, grosseria na língua ou cerveja na mão. E por essa total incompletude, corpo e alma resolveram se desfazer. Muita gente sonhou com ele antes de sua morte, outros já podem até conversar com ele, não irei entrar no mérito, só sei que o vi rindo ao ser enterrado. Estive com ele quando deu entrada no hospital, e também estava lá para vesti-lo pela última vez. Eram duas pessoas muito distintas. Tenho certeza de que não se conheciam. E para evitar brigas maiores, esse período em que eles o mesmo estiveram travados na cama foi um período de se conhecerem.
E resolveram dar um tempo, saírem dessa, um pause. Uma parada repentina para se chegar a um outro ambiente que lhe era mais calmo. Sempre declarou que nunca ficaria travado em uma cama, que era seu pior pesadelo. Pelas forças do destino, foi o que lhe aconteceu. Algo como tipo um castigo. Mas, depois da chance dada, reconhecido o castigo, preferiu a escolha do tempo. Não querer mais ser aquele e ir para outro lugar, descontinuar. Tenho certeza de que ele queria viver o crescimento dos netos, questionar a ação dos filhos, ser enérgico sem ser grosseiro, amoroso ranzinza, bruto delicado. Um equilíbrio que lhe era comum, mas que não é para a morte e a vida. Elas são duas irmãs errantes, a agirem independentes, sozinhas, mas tão próximas. Uma sabe dos defeitos da outra e se questionam. A vida traz a luz ao mundo, dando chance para que a experiência forme olhares e vontades. O excesso delas, ou sua compreensão, faz a morte agir. Ou como uma ensinadora, ou como invejosa, ela ceifa a alma da vida e a leva para outros ambientes, que dizem serem melhores. A morte abre outros mundos, liberta a alma do corpo, dando-lhe novas chances. Mas não gera o fim da vida, gera uma quebra, uma interrupção, ou fuga de ritmo. É essa sensação com que aprendi a conviver essa semana. Sei que meu sogro não está mais aqui, que deu apenas um tempo na dor que sentia, mas que vai voltar logo logo para mais uma cerveja e um cigarrinho importado do Paraguai.É, eu sei que vai. Dá-lhe, Tuninho. Tenha uma boa estadia
3 comentários:
A proximidade com que elas agem se mostra no fato da morte gerar a vida, em todos os casos. Quando morremos, nosso corpo serve de enriquecedor de terra. Vida. E quanto mais vivemos, mais a vida sai de nosso corpo. Ciclo do mistério.
texto excelente excelente Calixto!!
Aprendemos mesmo com a morte. O tempo vai passando, a vida vai passando, e então chega a nossa hora de passar. Adorei o texto. (:
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